À chegada ao Aeroporto Internacional de Barcelona o clima é pacífico. As bandeiras da Catalunha, de Espanha e da União Europeia convivem tranquilamente deixando aos mais distraídos a ideia de que se vive um período de paz institucional entre os vários níveis de governação. Mas a realidade não é essa. O governo de Madrid está há largos anos em guerra aberta com o da região autónoma da Catalunha que quer fundar um país novo.
Se a Catalunha se transformar num país independente pode tornar-se numa pujante potência económica, pelo menos assim esperam os apoiantes do corte do cordão umbilical com Espanha. Mas há quem apresente resultados mais catastróficos e não augure resultados proveitosos no final deste processo. Se é certo que Barcelona é o motor económico de Espanha, contribuindo largamente para engrossar os números do PIB do país, não deixa de ser preocupante olhar para os números da dívida pública daquela região autónoma. Há, por isso, um impasse. A sociedade catalã está profundamente dividida. Não é honesto falar de uma larga maioria favorável à independência, mas também não é possível ignorar que os anos da crise trouxeram um indesmentível aumento dos números de independentistas.
Esta é uma história antiga que podia começar a ser contada pelo tempo da península dos reinos fundidos pelos Reis Católicos ou, mais recuado ainda, pela expansão Visigoda que ajudaria a perceber o forte traço de identidade catalã. Mas avancemos até à Guerra Civil Espanhola que numa grande amálgama de sensibilidades políticas colocou à frente dos destinos de Espanha o ditador fascista Francisco Franco.
Durante o período de governação de Franco, Espanha era um país uno. Pelo menos assim transparecia como todos os estados fascistas da época. A realidade é que o reino de Espanha sempre foi muito heterogéneo e hoje é por demais evidente que nem sempre os retalhos foram bem cozidos e a manta tende a romper em diferentes latitudes. Não por causa do fim do franquismo, mas porque os traços de identidade são mensuráveis em cada uma das regiões autónomas.
O tema não é consensual, obviamente. Gera grandes clivagens no seio da sociedade espanhola e pode mesmo falar-se numa guerra que não filtra gerações, géneros ou extratos sociais. Dentro do sim à independência e dentro do não há espaço para toda gente. Jusèp Boya Busquets e Eduardo García talvez não se conheçam, ou talvez sim, afinal o primeiro é diretor do Museu de História da Catalunha e o segundo é presidente do movimento cívico Espanya i Catalans. Também vivem na mesma cidade, podem-se ter cruzado algures, mas há pouco a uni-los.
Boya Busquets dá a sua última entrevista como diretor de um dos mais importantes espaços museológicos da região. Na próxima já estará a assumir o cargo de diretor geral de Arquivos, Bibliotecas e Museus da Generalitat da Catalunha. Está entusiasmado com o novo desafio porque acredita que vai trabalhar para “construir um país novo”.
Eduardo García não acredita que o entusiasmo de Boya Busquets seja frutuoso, porque não tem a mínima dúvida de que a Catalunha nunca será um estado independente, mas não desvaloriza o tema. É por isso o representante de um movimento com origem nas redes sociais que se revoltou contra aquilo que dizem ser uma instrumentalização das manifestações do 11 de setembro – dia nacional da Catalunha – em benefício do separatismo.

O independentismo, ou a vontade de se tornarem cidadãos de um país chamado Catalunha sempre existiu, no entanto em proporções quase marginais. Mesmo depois do fim da ditadura, com a realização das primeiras eleições livres, foi aprovada a primeira constituição Espanhola com elevadíssimos níveis de aceitação por parte do povo catalão. 91,08% estavam de acordo com o documento e, mais tarde, 88,15% dos 59,30% que votaram em referendo, concordaram com um estatuto de autonomia que criava as principais instituições democráticas daquela região e o tipo de relações que passariam a ter com o estado central.
Foi Jordi Pujol o primeiro presidente do governo regional da Catalunha, a Generalitat, depois do fascismo e foi ele quem conduziu os destinos da região sempre com o mesmo guião, o Estatuto de Autonomia de 1979. Durante 23 anos a Catalunha consolidou-se enquanto região de grande pujança económica e lapidou os seus traços de nação. Foi possível voltar a falar-se em catalão e houve uma abertura ao mundo que fez de Barcelona uma das cidades mais visitadas por turistas em todo o mundo.

Pujol ganhou seis eleições consecutivas e era visto como o fiel capaz de negociar à esquerda e à direita, com socialistas e populares, garantindo estabilidade política à região. Talvez por isso nunca tenha sido favorável à desintegração do estado espanhol, mas desde os tempos em que fundou o Convergência Democrática da Catalunha, o partido que o fez chegar ao poder, muita coisa mudou. O poder passou por outras mãos, voltou para a Convergência Democrática e o próprio partido que Pujol fundou mudou de nome, talvez numa ação de maquilhagem para disfarçar os casos de corrupção em que o histórico líder se viu envolvido. Já nada é como era, nem a opinião de Jordi Pujol que hoje apoia a separação.
Pujol abandona o poder em 2003 para dar lugar a uma inédita liderança tripartida entre os esquerdistas do Partido Socialista, a Esquerda Republicana e os Verdes. Liderados pelo socialista Pasqual Maragall, colocam em marcha a reforma do estatuto de 1979 com o objetivo de aumentar as capacidades de auto-governação da Catalunha
O estatuto acabaria por ser aprovado pelo parlamento catalão e pelo parlamento espanhol, ainda que com algumas retificações que, em bom rigor, acabariam por descaracterizar o documento. Mesmo assim ele foi posto em marcha até ao momento em que o Partido Popular, que sempre se mostrou contra o aumento de regalias dado à região, o enviou para o Tribunal Constitucional. O que fez o Tribunal Constitucional em 2010? Ateou uma fogueira que ainda hoje arde.
Eliseo Aja é catedrático em Direito Constitucional na Universidade de Barcelona e não tem dúvidas de que a sentença do Tribunal Constitucional de 2010 é má. “É uma sentença com muitas opiniões pessoais, pouco concreta e que só tem de bom o resumo da jurisprudência anterior. Desvaloriza o estatuto, tira-lhe importância”. Mas a sua análise continua com os juízes no centro da questão.
Se a posição de direta confrontação do Tribunal Constitucional está na origem da exaltação dos ânimos, a verdade é que a condução política desta questão pode não ter sido a mais indicada para resolver a questão. Em Espanha já houve dois pesos e duas medidas, ou até mais, mas duas houve seguramente.
As questões independentistas não são novidade, mas não se esgotam na Catalunha. O País Basco, mais a norte angariava todas as atenções e até parecia ter um método que o governo de Madrid compreendia melhor: a violência. Pelo menos os ataques terroristas deram àquela região melhores proveitos do que a Catalunha alguma vez conseguiu ou parece estar a conseguir.
Nuria Bosh é catedrática de economia pública na Universidade de Barcelona onde também se doutorou em Ciências Económicas e Empresariais. Nos períodos em que não está a dar aulas, está a fazer as contas que lhe garantem que “a independência teria mais benefícios que custos”, ainda assim admite que a separação do resto de Espanha era a última opção.
“Em 2012 a Catalunha pedia um tratamento fiscal parecido ao do País Basco mas o estado espanhol não quis entrar nesta negociação. Se o estado espanhol tivesse dado à Catalunha um tratamento semelhante ao que deu ao país basco – mesmo com uma contribuição de solidariedade paga por Barcelona a Madrid – estou cem por cento segura de que hoje não estaríamos nesta situação.”, diz Nuria Bosh.
O governo espanhol parece ter sido mais tolerante com o País Basco do que com a Catalunha, o que para Eduardo García foi um erro, “é como dar a uma criança um chupa-chupa para ela deixar de fazer birra”. Uma birra negra que deixou centenas de vítimas em toda a Espanha e, inclusivamente, em Barcelona onde a 19 de junho de 1987 um carro-bomba matou 21 pessoas.
O País Basco beneficiou com os ataques terroristas da ETA: ficou a gerir os seus impostos e a contribuir com uma pequena taxa para o estado central. O estatuto de 2005 do governo tripartido das esquerdas catalãs tencionava chegar aqui, mas o Tribunal Constitucional não aceitou. Desta vez não aceitou e agora talvez seja tarde para voltar a trás.
Francesc Pallarés dá aulas de Ciência Política numa das mais importantes universidades públicas de Barcelona, a Universitat Pompeu Fabra. É uma das mais recentes instituições de ensino espanholas, nasceu em 1990 mas cedo chegou aos primeiros lugares de prestigiados rankings internacionais. Hoje acolhe pouco mais de dez mil estudantes nas áreas ligadas às humanidades, direito e economia.
Pallarés é um dos seus mais prestigiados docentes. Já foi diretor do Departamento de Ciência Política, mas hoje apenas concilia a investigação nas áreas da comunicação política e comportamento eleitoral com as aulas.
Não valoriza as ligações ao País Basco porque “o financiamento não é o único problema, é apenas uma parte. Existe toda uma componente de identidade na Catalunha”. Prefere olhar para outro fator que, no seu entender, ajudou e muito ao aumento do independentismo, a posição pouco isenta das televisões e dos jornais.
“Para os meios de comunicação social públicos, Espanha é apenas Madrid. A Catalunha acaba sempre em segundo plano”
Francesc Pallarés, Catedrático de Ciência Política na Universitat Pompeu Fabra, Barcelona
A discussão em torno dos meios de comunicação social é quase sempre referida quando se fala sobre o tema catalão. Para Maiol Roger, correspondente na capital da Catalunha para um dos maiores jornais de Madrid, “é normal, afinal estamos num momento de trincheiras”
“Esta situação não pode continuar como está”. Esta citação podia ser atribuída a qualquer um dos intervenientes nesta reportagem. Foram nove as pessoas que se propuseram a ajudar-nos a deslindar este labirinto, todas elas com posições mais ou menos definidas, mas com a consciência clara de que estamos perante um grave problema e é preciso encontrar uma solução para ele.
Em cima da mesa podem estar várias possibilidades, sendo que a primeira delas é deixar estar tudo como está. E esta parece ser a solução que mais agrada ao governo espanhol que insiste em não ceder às investidas do governo da Catalunha. As negociações entre os dois poderes estão praticamente estagnadas e parece não haver uma forma de desatar este nó, pelo menos pacificamente.
O governo de Rajoy escuda-se na Constituição e Eduardo García encaixa nesta linha de pensamento. O homem que no início desta página deixou claro que Espanha “já foi muito mais que uma nação, foi um império”, não tem dúvidas de que “a Constituição não permite a separação de uma parte de um país” e é preciso cumpri-la. “Tem que se cumprir a lei, uma sociedade sem lei não pode ser democrática”.
“Não há nenhuma constituição no mundo que aceite a realização de um referendo para a separação de uma das suas partes”. Estas palavras são do constitucionalista Eliseo Aja que de forma direta deixa o campo judicial para colocar a questão quase exclusivamente no campo político. “O pacto entre o governo central de Madrid e a região da Catalunha é absolutamente indispensável”.
O pacto é indispensável para a realização de um referendo que deve ser aceite pelo governo de Madrid para se fazer um referendo com validade como se fez na Escócia ou no Quebeque. É indispensável para que possa ser reconhecido e é indispensável para que não aconteça como em 2014 quando o referendo que foi feito deu a vitória ao “sim” à independência, mas a taxa de participação foi muito baixa, talvez porque muitos dos unionistas não foram às urnas.
“Só vamos conseguir resolver este problema nas urnas, o que nunca nos foi permitido. Chegámos onde chegámos porque o estado Espanhol não é Inglaterra. O estado Espanhol não fez o que fez Cameron que perguntou ao povo o que queria. Aqui não nos deram essa opção.”
Jusèp Boya Busquets, diretor do Museu de História da Catalunha
A federalização do estado espanhol surge como mais uma das opções para resolver este imbróglio, mas como todas as outras não é consensual e já será tarde demais para avançar para a “terceira via”. “Nunca ouvi nada”, diz Jusèp Boya Busquets apontando uma vez mais para a necessidade de o governo de Madrid se disponibilizar para o diálogo.
A independência catalã está em construção, mas como a catedral de Gaudi a diferença de tempo entre o lançamento da primeira pedra e o dia em que as gruas deixam de se ver pode ser muito grande. E tal como para a conclusão da Sagrada Família já foram adiantadas muitas datas, também para o nascimento do país Catalunha foram previstos vários dias. Mas até agora, nada.
Nenhuma outra região de Espanha consegue ultrapassar a Catalunha. Madrid bem tenta, mas é o PIB de Barcelona a locomotiva de Espanha e muito provavelmente a locomotiva da insatisfação.
Pol Corominas é um jovem recém licenciado que ainda não conseguiu sair da casa dos pais e culpa o estado central por isso. Porque é que a região que mais se esforça para ter uma economia sólida tem que pagar para todas as outras que pouco ou nada fazem para vingarem? Este é o pensamento de muitos catalães e é essencialmente pela conjuntura económica que cresce o sentimento independentista.
No seu dia zero este país vai ter que se preocupar com a sua dívida. Esta é a região de Espanha que mais produz, mas também é a que mais deve.
Olhando para o gráfico da dívida Maiol Roger diz ver um dos maiores problemas do processo de independência: “para quem vai ficar a dívida?”
Até que se estabilize como país o potencial económico que Núria Bosh vê na região para se conseguir governar e ser um estado próspero, pode sucumbir. A Catalunha é altamente dependente da indústria que aqui se fixou e de muitas grandes empresas que agora ameaçam sair.
“As empresas rumam a Madrid por questões estratégicas, mas não abandonam apenas a Catalunha, também saem de outras regiões autónomas. Em Madrid têm melhores comunicações, benefícios ficais…”, argumenta a economista.
A realidade, porém, mostra o contrário. Desde o referendo do passado dia 1 de outubro que foram mais 500 empresas decidiram mudar a sua sede para outras regiões de Espanha.
E a relação com a União Europeia, como fica depois de a Catalunha se tornar num novo país?
“É muito importante a Catalunha manter-se na União Europeia”, diz Maiol Roger, mas é muito provável que depois de independente Barcelona tenha que “enfrentar um processo de adesão que pode demorar mais ou menos tempo”, pelo menos disso está convencido o constitucionalista Eliseo Aja. “Não vejo outra forma”, conclui.
Nuria Bosh parece mais convicta de que a entrada na União Europeia se vai conseguir com mais ou menos dificuldades. “É claro que não é um procedimento automático, mas nós, economistas, pensamos que não interessa a ninguém que a Catalunha fique de fora da União Europeia. Não interessa nem a Espanha, nem à Catalunha e muito menos à própria União Europeia porque há muitos interesses económicos.”
“Há espanhóis que não vão permitir que a separação aconteça.”, garante Eduardo Garcìa que depois de agitar a bandeira do terrorismo islâmico – que pode ver no vazio de poder criado por uma Catalunha independente a “oportunidade para reconquistar Al-Andaluz” – agita a bandeira das armas: “temos o dever de defender a nossa nação” e quando confrontado com a possibilidade de um conflito armado, não se demarca. “Eu disse o que disse, esse cenário é horrível e espero que nunca cheguemos a ele”.