No se puede explicar
No se puede contar
Imposible, el momento
No se puede parar
Lento
El camino me llama
Desandando la trama
Navegando en el tiempo
Pon el vino a enfriar
Porque ya estoy llegando
Lo que intento explicar
Es que ya estoy llegando
Caminantes
(Andrés Suárez, Iván Ferreiro)
Comprei o livro “Caminho Português de Santiago de Compostela – My Way”, em fevereiro de 2018, numa ida à Livraria Lello, porque “um dia vou fazer o caminho”, pensei.
Na parte inicial deste livro é fornecida informação histórica e prática para a preparação da viagem. “O que é um Ano Jacobeu?” – li algures, e a resposta vinha de seguida – “Sempre que o dia 25 de julho calhe a um domingo, esse ano é um Ano Jacobeu. O último foi no ano 2010 e o próximo será em 2021.”.
2021 seria o ano.
Dizem que o caminho nos muda a vida. A minha vida estava já a mudar quando iniciei o caminho, mas porque não experimentar?
O meu caminho, que foi o Caminho Português, iniciou-se em Valença a 3 de julho e terminou em Santiago de Compostela, no dia 9 de julho de 2021. Foram 124 km segundo a nossa Compostela (mais segundo os nossos relógios) percorridos em seis etapas e um dia de aquecimento:
Valença – Tui
Tui – O Porriño
O Porriño – Redondela
Redondela – Pontevedra
Pontevedra – Caldas de Reis
Caldas de Reis – Padrón
Padrón – Santiago de Compostela
Valença – Tui (o aquecimento)
Chegadas a Valença, depois de ligar na viagem de carro a reservar alojamento para essa noite em Tui, fomos comprar os últimos pensos para bolhas, na esperança de não ter de os utilizar.
O albergue público estava fechado, mas depois de perguntar aos bombeiros e no Hotel Val Flores percebemos que estacionar em qualquer lugar gratuito era tranquilo (e foi!). Na verdade, o funcionário do Hotel Val Flores foi prestável ao ponto de nos indicar um lugar à porta para deixar o carro, onde na semana anterior outros peregrinos tinham estacionado. Deu-nos ainda um mapa de Valença e indicou-nos o caminho a seguir até Tui – aqueles 4 km iniciais, que fizemos ainda sem credencial, passando pela fortaleza e onde ouvimos o nosso primeiro “Buen camino”, que imediatamente me fez aflorar umas gotículas de felicidade aos olhos. Estava a começar.
A vista para a catedral de Tui, o rio e a ponte férrea é soberba. O senhor do Hotel Val Flores tinha razão.
Estávamos também nos primeiros quilómetros quando nos indicaram o caminho (ao ver que íamos pelo sítio errado), nos perdemos dele ao admirar a fortaleza, pedimos indicações e nos cruzámos com mais peregrinos. Nestes primeiros quilómetros só os pés não doíam…
Atravessámos então a ponte entre Portugal e Espanha. Uma fronteira física cujos limites se esbatem pela mescla de culturas nortenhas. Soubemos ao segundo dia que na Galiza muitos gostariam de adotar o horário português. A claridade das 22h espantou-nos nesta época.
Chegámos a Tui e a mesma vida de Valença habitava as esplanadas. Pousámos o peso das mochilas e trocámos as botas pelos chinelos, prontas para, mais leves, explorar a pequena cidade. Decorria um festival em frente à catedral de Tui. Jantámos na Cocina di SantiAmen, pulpo à galega, huevos rotos e croquetas, partilhando tapas ao som das gaitas de foles. E uma Estrella Galicia reserva 1906.
O funcionário do Jacob’s Hostel, em Tui, onde passámos a primeira noite, vendeu-nos a credencial do peregrino (necessária para carimbar em igrejas, alojamentos, restaurantes, lojas – em qualquer lado – e apresentar na Oficina do Peregrino à chegada para obter a Compostela). Talvez fruto da pandemia éramos apenas 5 no hostel.
Tui – O Porriño (18,3 km)
Começámos o dia despacito, com madalenas do hostel.
Paragem na catedral para carimbar a recém-obtida credencial e seguimos camino.
Percorremos Tui até iniciar o bosque. Cruzámo-nos com um casal de Saragoça que nos acompanhou desde a Capela da Virxe do Camino e nos deu orientações sobre o Camino Complementario de modo a evitar passar muito tempo em estrada pelo polígono industrial. O seu ritmo era impressionante e revelava alguma experiência nestas andanças. Acontece que todos os anos tiram uma semana de férias para fazer algumas etapas dos vários caminhos que existem.
Foi bom poder observar alguns animais e parar em Ponte das Febres para comer uma tostada com tomate e um sumo de laranja.
Algures no caminho parou também uma carrinha da qual saltou prontamente um senhor que nos convidou a avaliar a mercadoria exposta na traseira. Vendeu-nos bolos e pão.
Já em O Porriño apanhámos o grupo de portugueses que tínhamos encontrado essa manhã na catedral de Tui e, que tal como nós, se dirigia à velocidade possível, para o Albergue Camino Portugues.
Chegámos finalmente e pudemos lavar roupa no tanque e estendê-la na rua até começar a chover e transformarmos os nossos beliches em estendal de roupa.
A chuva foi motivo para o motorista que veio entregar pizas a outro grupo do albergue nos dar boleia até ao centro, a pedido da simpatiquíssima Helena que nos havia recebido com um sorriso e um português-galego extremamente prestável.
Jantámos na Malasera e fomos descansar, porque a etapa foi longa e havia já uma bolha entre as três.
O Porriño – Redondela (15,6 km)
Há bosque! Depois de 8km. A subir. Mas ouvem-se os pássaros e o vento a agitar as folhas das árvores.
O dia começou n’O Progresso. A pastelaria onde oferecem bolos com o pedido da bebida, recomendada pela Helena do albergue. Depois de alimentadas e com chocolates novos na mochila iniciámos o caminho com uma morrinha.
Aparecia um arco-íris no horizonte, mas de O Porriño até Mos seguimos por alcatrão, aquele acerca do qual já formámos a nossa opinião – não gostamos.
Mos tinha uma igreja fechada, uma loja do peregrino com carimbo para a credencial e mais subidas para nos oferecer.
Nesta etapa conhecemos uma família de canarinos, que apenas voltámos a encontrar no último dia, em Milladoiro, quase a chegar a Santiago.
Chegar a Redondela com chuva e ir comer uma empada de choco depois de um banho no albergue A Conserveira foi o possível de realizar antes de descansar as pernas do desnível do dia. Foi uma etapa longa, embora tenha sido a mais curta.
Havia muitos planos sugeridos pela funcionária do albergue (visitar a cascata A Feixa, conhecer o centro, ir à praia), mas a chuva e os quilómetros nas pernas levaram-nos a relaxar e tapear no Samoa ao pôr-do-sol das 22h.
Redondela – Pontevedra (18,2 km)
Começámos este dia mais tarde, depois de alguns percalços.
Passámos pela bonita Arcade, com a sua ponte e os barquinhos.
Tivemos a companhia durante vários quilómetros de um cão, que estava sozinho numa zona de bosque. Seguiu-nos ainda que nos esforçássemos para que não o fizesse. Ao chegar a uma pequena localidade, uma senhora chamou-nos para o interior de uma capela – a capela de Santa Marta en Bertola – para que carimbássemos a nossa credencial. Estava lá dentro com o seu cão e quando viu o nosso “Simba” e lhe explicámos que devia ser abandonado levou-o consigo dizendo que lhe iria dar comida.
Aliviadas por estar (aparentemente) bem entregue, mas sentindo já a sua falta aos nossos pés, seguimos caminho e optamos, uma vez mais por um caminho complementario em O Pobo, depois de falar com um local que realizara já ele o caminho e nos falou das plantações características da zona – a vinha e o milho.
Já em Pontevedra optámos por um bosque que contorna o rio, acrescentando mais uma vez quilómetros à etapa e beleza ao caminho.
Apanhámos chuva (desta vez a sério) no último quilómetro. Quase chegávamos secas, mas como se diz: o caminho tem de ser abençoado.
Concordámos que este foi o melhor alojamento em que ficámos. Um quarto privado que, com as restrições COVID19, passou de seis para três pessoas, com casa de banho privada. O GBC Hostel tinha ainda uma zona comum ampla onde pudemos ver a semifinal do Euro 2020 entre Itália e Espanha enquanto jantávamos a comida encomendada pelo serviço de entrega – o cansaço e as ótimas condições do espaço não nos permitiram andar nem mais um quilómetro neste dia.
Pontevedra – Caldas de Reis (23 km)
A etapa de hoje começou com um pequeno-almoço no hostel (pudemos fazer sumo de laranja natural e comer fruta!) partilhado com o Charles, da Escócia, que já fez dezassete vezes o caminho, sempre sozinho já que a esposa não pode caminhar, tendo já percorrido quase todas as vias e optando hoje pela variante espiritual, que o levará a Vigo. Estava também o Emanuel, de Itália, que no dia anterior não revelou aos quatro espanhóis e a nós, portuguesas, a sua nacionalidade enquanto assistíamos ao jogo. As nossas duas primeiras etapas tinham sido apenas um dia de caminho para o Emanuel.
Parámos primeiro na Igreja da Virxe Peregrina, que se destaca no centro de Pontevedra com a sua planta em forma de vieira. Continuámos pelo centro até ao rio Leréz e atravessámos a ponte.
A etapa levou-nos por caminhos florestais ladeados por pedras e árvores cobertas de musgo. Chegámos a Caldas depois de parar no Don Pulpo, que reclama o carimbo mais antigo do caminho. Aqui uma Aquarius e música espanhola de baile receberam-nos a nós e a outros dos peregrinos com quem nos vamos cruzando em todas as paragens – percebemos assim que temos o mesmo ritmo (ou a mesma vontade de conhecer todos os cafezinhos do caminho).
A paragem seguinte foi no Oasis, porque o cansaço não nos permitiu parar apenas no sítio seguinte: as cascatas do Barosa. Aqui prolongámos a pausa com uma cerveja artesanal 18/70. Valeu a pena o desvio e admirar este recanto natural.
Já em Caldas de Reis não resistimos a mergulhar o corpo no “tanque público de lavar a roupa” com água termal, enquanto conversávamos com duas portuguesas, uma delas a fazer o seu sexto caminho, com dois canarinos e com um grupo de madrilenos.
Jantámos no Roquiño e optámos pelo menu peregrino, disponível em muitos dos restaurantes ao longo do caminho.
A pensão Augas Quentes foi o nosso poiso. Bem localizada, mas com menos espírito de albergue.
Caldas de Reis – Padrón (18,7 km)
Hoje deixámos Caldas de Reis para trás. Escolhemos uma pastelaria com esplanada para tomar o pequeno-almoço, comprar empanadillas para o caminho e observar a vida da cidade.
A igreja de Santo Tomas Becket (como muitas outras ao longo do caminho) estava fechada quando saímos. Faltou vê-la por dentro, mas a praça envolvente com as palmeiras remetia-nos para um cenário costeiro.
Seguimos por pouco tempo entre ruelas até entrar em caminho de terra pelo bosque.
Vários peregrinos a fazer o mesmo caminho, quase todos na mesma direção (há sempre quem passe em sentido oposto), cada um com o seu motivo. Há pessoas sozinhas, grupos familiares com camisolas feitas a rigor, amigos que se reúnem para fazer o caminho – como os que nos acompanharam até à primeira paragem, no Café-Bar Esperon, com as suas paredes repletas de memórias de quem por ali parou.
A etapa de hoje passou por campos de milho, descampados à beira da autoestrada e bosques que parecem encantados. Vimos cavalos, bodes, galinhas, vacas. Ouvimos pássaros e fotografámos caracóis que escalam os marcos do caminho.
Depois de algum tempo em floresta começámos a ver nas árvores publicidade ao café Buen Camino com uma terraza com vista para os campos e uma igreja. Ao sair da floresta conseguimos aperceber-nos da sua imensidão. Parámos então, mais uma vez, e comemos algo para ganhar forças para os últimos quilómetros.
Quase a chegar, há um miradouro e depois de apreciar a vista atravessámos o rio Ulla. Andámos mais um pouco e passámos a caminhar com o rio Sar a acompanhar-nos à esquerda.
O centro de Padrón tem praças medievais com arcos empedrados, a Iglesia de Santiago Apóstol de Padrón e, do outro lado do rio, no alto, o Convento do Carme.
Encontrámos um nonagenário que recordou as suas visitas a Santiago de Compostela aconselhando-nos a apreciar, como ele, a rua do Franco.
Visitámos o Pedrón, Santiaguiño do Monte e fomos jantar à Pulperia Rial. Comida deliciosa e o espetáculo do cantor no pequeno beco rodeado de esplanadas animadas foram o desfecho perfeito para o dia.
Depois de celebrar a minha entrada nos 30 anos no bar a Lareira seguimos noite dentro até ao albergue para descansar mais uma noite.
Padrón – Santiago de Compostela (24,8 km)
Depois de um pequeno-almoço na cafetaria do albergue começámos a última etapa, muitos quilómetros nos esperavam.
As felicitações pelo aniversário ajudaram o ânimo dos primeiros quilómetros.
Parámos então na casa do Faramello e o Emanuel, com quem nos havíamos cruzado no hostel de Pontevedra, juntou-se a nós.
Seguimos a caminhar depois de (mais) uma Aquarius e conversar com o amável dono deste estabelecimento. Cada vez os quilómetros que nos separavam de Santiago eram menos.
Em Milladoiro fizemos a última pausa para comer.
Depois de nos decidirmos pelo caminho de Santa Marta ao invés do caminho dos Conxos (sondando os locais que iam passando) fizemos os últimos passos já no meio da cidade. Mais peregrinos chegavam ao mesmo tempo que nós.
Contornámos a catedral para entrar no túnel onde tocava o gaiteiro e aí a emoção foi real. Olhar em volta e ver todos os peregrinos a celebrar a chegada é impressionante.
Tirar as botas que me acompanharam seis dias, encontrar pessoas com quem nos cruzamos em diferentes pontos do caminho, agradecer (sobretudo aos pés) e relaxar um pouco a olhar para a catedral.
Não fomos a tempo de obter a Compostela no dia da chegada. Encontramos no dia seguinte, na fila para a Compostela, o grupo de portugueses do albergue de O Porriño. Tinham ficado a última noite em Milladoiro e só então rumaram a Santiago, finalizando o caminho com uma etapa mais curta.
O cansaço era muito e por isso, nessa noite, apenas um jantar tardio na praça da Quintana fomos capazes de aproveitar para depois dormir.
Já não havia mais quilómetros para fazer, mas passou a haver a vontade de explorar ainda mais caminhos.
Em Santiago de Compostela visitámos a catedral e assistimos à missa do peregrino. Não foi possível ver o botafumeiro gigante em funcionamento (sorte de apanhar o dia certo ou 400€ podem fazê-lo funcionar), nem abraçar Santiago, pelas restrições COVID19. Guardámos ainda tempo para fazer uma free walking tour pela cidade e conhecer a sua história, comprar souvenirs e conviver com outros peregrinos.
O desejo de terminar, um dia, o caminho em Fisterra persiste. Desta feita, uma tour organizada pela Galicia Travels levou-me a Fisterra, Muxia e alguns outros pontos da belíssima Costa da Morte.
Notas: Na preparação utilizámos também uma aplicação que permite planear o itinerário introduzindo o número de dias disponíveis ou o número de quilómetros que se pretende fazer por dia ( https://www.caminodesantiago.gal/pt/inicio ).
Por ser também “ano pandémico”, o fluxo de peregrinos encontrava-se reduzido, as atividades ao longo do caminho eram escassas e os albergues públicos estavam maioritariamente fechados. Também por este motivo o Ano Jacobeu foi prolongado até 2022.