Como é parar, deixar tudo para trás e viajar sem bilhete de volta pela América Latina

Depois de vários anos a estudar e a trabalhar a Rita fez uma pausa na sua vida profissional e foi um ano viajar pelo mundo

Vulcão Acatenango com vista para Vulcão Fuego, Guatemala
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E se a tua vida ficasse em pausa? A das outras pessoas seguisse, mas a tua fosse suspensa?

Agora que penso, há muitas formas de isso acontecer, mas, felizmente, o motivo desta mudança de ritmo foi a possibilidade de viajar por vários meses. Um sonho construído em cinco anos, que se tornou realidade.

Alguém me dizia “um oásis nos teus 30 anos, na tua vida”, mas, na verdade, eu não quero que seja um oásis. Quero que esta leveza que viajar me trouxe brote sempre e não fique circunscrita entre as dunas douradas, mas que flua até encontrar todos os oceanos.

Em Portugal não é comum fazer-se um gap year, nem aos 18, nem aos 30. Quando saímos do nosso cantinho e entramos num hostel “no outro lado do mundo” ou quando nos unimos a uma tour descobrimos todas essas pessoas que, como nós, sentem como essenciais estas pausas. Já não sentimos que é estranha a nossa opção de vida, achamos estranho como o resto das pessoas, “lá em casa”, conseguem viver apenas com pausas contabilizadas em férias contrarrelógio.

Depois de onze anos e meio a estudar medicina, cinco e meio dos quais a trabalhar como médica, decidi dedicar-me por um ano a viajar e fazer voluntariado.

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O voluntariado já fazia parte da minha vida, durante quatro anos na universidade e pontualmente antes disso. As viagens faziam parte do meu imaginário desde criança, motivada pelos sítios incríveis acerca dos quais lia nas enciclopédias (antes de começar a viajar na internet…) e passaram a ser a minha prioridade na lista das despesas assim que comecei a trabalhar.

Não sei ao certo quando pesquisei a primeira vez “quanto custa viajar durante um ano”, mas sei que o resultado dessa pesquisa me pareceu atingível e que quando comecei a trabalhar tinha já destinado parte dos meus rendimentos para este sonho.

A minha primeira viagem (a sério) sozinha foi para a Madeira, em 2020 – uma semana que me soube a pouco e me deixou a certeza de adorar viajar na minha própria companhia e ao meu ritmo.

Em julho de 2021 fiz o Caminho de Santiago e entreguei a minha carta de rescisão no trabalho.

Em agosto viajei por Portugal, Espanha e Itália, enquanto preparava o próximo passo e a 31 desse mês estava num avião de Madrid para Bogotá sem bilhete de regresso.

Passei os seis meses seguintes na América do Sul, um mês a fazer voluntariado com refugiados da Venezuela, dois meses a viajar pela Colômbia, dois meses a cruzar o Peru de norte a sul e quase um mês pelo Brasil, visitando dois estados – Rio de Janeiro e São Paulo.

Voltei a Portugal e estive um mês a fazer voluntariado com refugiados do Afeganistão.

Voltei a partir para pouco mais de um mês pelo México e Guatemala.

Histórias destes dez meses há muitas. Fui sem plano e, por muito stressante que possa parecer, acordar na maioria dos dias sem saber onde ia dormir foi o que me permitiu visitar tantos sítios aos quais nunca chegaria com uma viagem planeada. Até a zona do globo onde se iria desenrolar o meu gap year foi “desplaneada”, por causa da pandemia – essa tal que me deu ainda mais certeza da importância de aproveitar o presente.

Das experiências que vivi, destaco a caminhada de vários dias que realizei na Colômbia, para a Ciudad Perdida e onde passei o meu Natal e a que realizei no Peru, para Machu Picchu. Ambas me trouxeram uma sensação de superação única, semelhante ao Caminho de Santiago. Caminhar vários dias, com mochila às costas apenas com o essencial, superando altitude, calor e frio, passou a ser das minhas atividades preferidas. Pelos mesmos motivos, também as caminhadas para ver o nascer do sol na Ilha Grande (Brasil), no Vulcão Acatenango e no Lago Atitlán (Guatemala) me preencheram de uma maneira indescritível. A passagem da fronteira terrestre do México para a Guatemala, pelo desafio que ofereceu será também guardada para sempre na minha coleção de memórias felizes…

Além das histórias, tenho uma nota escrita no telemóvel durante uma das terríveis viagens em “van” com os ensinamentos que tinha aprendido até àquele dia a viajar sozinha. Segundo essa nota, aprendi que Portugal (e o continente Europeu) é minúsculo comparado com a imensidão destes países, sobretudo porque os percorri sempre de autocarro, tendo realizado apenas dois voos internos na Colômbia. Aprendi que a viajar sozinha quase nunca estás sozinha e que muitas vezes estás mais sozinha na tua rotina de trabalho. Aprendi que a maioria das pessoas é boa e tem boas intenções (mas isso eu já suspeitava, de outra forma não teria ido). E depois de voltar esta nota estendeu-se ao tamanho de um livro.

Sem dúvida que agradeço à minha família para quem posso sempre voltar e a toda a gente com quem me cruzei nas minhas viagens, já voltei a estar com algumas delas e é incrível chegar a lugares desconhecidos e sentir o calor do cumprimento de quem já partilhou connosco bons momentos.

Quero ainda cumprir o plano original do meu gap year, mas quero muito voltar aos sítios que me apaixonaram. Este é o grande problema de viajar, talvez mais acentuado por ter crescido em Portugal – a saudade dos múltiplos cantinhos que sentimos que poderiam ser casa…

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